17.3.24

 LLANSOL: FICÇÃO-CONTRA-FICÇÃO


Na quinta-feira, 21 de Março, pelas 18h30, a Livraria Tigre de Papel (Lisboa) apresenta mais uma sessão do ciclo «Ficção-contra-ficção», desta vez dedicado à Obra de Maria Gabriela Llansol, numa conversa entre Maria Etelvina Santos (do Espaço Llansol) e a poeta Elisabete Marques.

13.3.24

 O ESPAÇO LLANSOL NA FEIRA DO LIVRO DE POESIA 

EM CAMPO DE OURIQUE

O Espaço Llansol estará mais uma vez na Feira do Livro de Poesia, no Jardim da Parada em Campo de Ourique, juntamente com a nossa co-editora Mariposa Azual. Estarão presentes todos os livros disponíveis da nossa colecção «Rio da Escrita», bem como grande parte dos cadernos temáticos das sessões públicas do Espaço Llansol.

O programa dos dias da Feira, entre 19 e 24 de Março, está disponível na página da Casa Fernando Pessoa, organizadora do evento:

https://www.casafernandopessoa.pt/pt/cfp/programacao/evento/feira-do-livro-de-poesia-3?occurrenceID=5948

3.3.24

A «RESTANTE VIDA» DO AMOR

Com a beguina Hadewijch de Antuérpia

Concluimos ontem o ciclo «A Restante Vida» com os comentários (de João Barrento), a habitual exposição (de materiais do espólio e da Biblioteca), o video (com leituras de textos de Llansol sobre Hadewijch, e imagens e peças musicais afins), e finalmente a leitura de Poemas de Hadewijch de Antuérpia (pelas jovens actrizes Eva Dória e Anita Ribeiro). 


Deixamos aqui o essencial dos comentários de João Barrento, que podem ser completados com a introdução ao Caderno que acompanhou a sessão:

  

Hadewijch: O Amor sem porquê

ou:

- O «Amor completo» – e sempre irrealizado, objecto de busca (vd. Luís M. e a sua «Carta às Damas do Amor Completo», em Na Casa de Julho e Agosto);

- Uma dialéctica do Amor (espiritual vs. nupcial, ele e o seu contrário = a vida, o tempo, o mundo...)

 

Estamos no terceiro momento do Ciclo «A Restante Vida do Amor», e regresso à noção de Restante Vida (que não é só de Llansol): já vem dos Gregos, e – ocorreu-me a propósito desta sessão – está presente em Kafka na expressão «das sonstige Leben» (literalmente: «a restante vida»), no capítulo V do romance O Castelo.

Kafka é também (como todas as suas personagens) um dos que «herdaram as margens», uma referência em Llansol, e neste ponto com evidentes coincidências quanto à leitura de um mundo humano «sem raízes», no reverso de qualquer Restante Vida.

Em Kafka, tal mundo é dado pelas instituições do Conde, as leis e o poder do Castelo, e o lugar da personagem K. nesse contexto: «A relação directa com as instituições não era assim tão difícil, porque o papel das instituições, por mais organizadas que fossem, era o de defender coisas distantes e invisíveis, em nome de uns senhores distantes e invisíveis [o castelo inacessível], enquanto K. lutava por algo de vivo e próximo».

[Hoje tudo se extremou, o distante e invisível acentuou-se, e o vivo e próximo quase desapareceu! E já não se luta por uma restante vida – a consciência dessa outra realidade mais real foi absorvida por um novo poder sem face, o digital-artificial].

Um pouco mais adiante lemos: «K. foi remetido para uma esfera de vida fora das instituições, totalmente inapreensível e cinzenta...» Daí a sua busca de uma «restante vida» (ein sonstiges Leben) à margem dos poderes, fora do Castelo. E o narrador pergunta:

«E o que era neste caso essa restante vida? Em nenhum outro lugar K. tinha visto um tal entrelaçamento entre Poder e Vida... Por vezes parecia até que poder e vida tinham trocado de lugares»!

[Sem o saber, Kafka chega aqui até aos nossos dias e ao tema da «biopolítica», proposto por Michel Foucault, em Vigiar e Punir, e tratado também por filósofos como Giorgio Agamben ou Roberto Esposito. Essa biopolítica é a dos poderes que controlam e decidem sobre as vidas/os corpos de cada um, não deixando qualquer espaço para a restante vida. E enganando, fazendo crer que defendem e estimulam a vida… É a política actual da abstracção dos corpos reduzidos a números, a falsa liberdade (cínica) das democracias formais. Mas algo como a biopolítica – e a sua crítica nas sociedades burguesas nascentes – aparece já antes, desde Marx e Nietzsche (vd. Considerações Intempestivas), até Althusser e outros (nos anos 60), com noções como os «aparelhos ideológicos» (do Estado, da escola, da Igreja...) que gerem as vidas individuais. Aliás, já entre os Gregos antigos existia uma distinção fundamental, expressa nos termos (ambos para designar a «vida») zoé (a vida nua de homens e animais, o simples facto de viver) e bios (a «vida qualificada», e quantificada, dos indivíduos ou grupos que a política decide e controla) (vd. Agamben A Comunidade que Vem e Homo Sacer).

E uma nota ainda, que pode aproximar Kafka da nossa figura de hoje, a beguina Hadewijch. Walter Benjamin define a Obra de Kafka como «uma elipse com dois vectores» – o da experiência «mística» (da Kabbala judaica e da própria escrita como «oração«) e o da sua experiência no mundo (a cidade de Praga, a lei, os poderes)]. 

Também em Hadewijch, e Llansol, há dois vectores sempre presentes quando se trata do Amor como forma essencial de uma Restante Vida, como veremos a seguir. E tudo isto está também presente no recente filme de Bruno Dumont (2009), intitulado simplesmente Hadewijch, que trata esta matéria a partir de uma figura feminina contemporânea que recupera esse nome, e que se move entre o o convento e as contradições do amor no espaço do «mundo».


 

A figura de Hadewijch surge precisamente em A Restante Vida, já como figura muito singular, diferentemente dos livros seguintes, onde as beguinas surgem como comunidade, com muitos nomes e artes. Mas Na Casa de Julho e Agosto abre já com uma «Carta de Luís M. às Damas do Amor Completo» que também nos poderia servir de guia nesta viagem pelo tema, central nos primeiros livros, até Causa Amante, se reconhecermos nessas mulheres, e particularmente em Hadewijch de Antuérpia, uma «forma amativa de conhecimento».

O tempo de Hadewijch é também o do  «reino da Dama» na literatura cortês/ trovadoresca, que não deixa de ter ecos na poesia do Amor (Minne) de Hadewijch ou Beatrice de Nazareth – que vão beber (para além do Cântico Maior) alguma influência nos trovadores, mas reduzem o Amado a um só (Ele!) – que pode ser vários, assumir diversas configurações! Nasce aqui, nesta poesia do Amor a um tempo espiritual e do corpo, o chamado misticismo nupcial de João da Cruz, (no Cântico Espiritual e na Chama de Amor Viva), como expressão de uma ligação imediata e directa da Alma com o Amado, um evangelho interior de um Amor eterno... (há também paralelos com Dante, na Vita Nuova, ou, no que à vertente mais conceptual ou «essencial» diz respeiro, com Mestre Eckhart).

São formas novas de religiosidade e vivência extática que atravessam as obras de algumas beguinas, em paticular de Hadewijch de Antuérpia, que não deixou rasto biográfico, apenas poemas, visões e cartas (vd. textos no final do caderno que acompanha esta sessão). É, em Llansol, a beguina mais livre e disponível para metamorfoses, símbolo e figura de um misticismo do corpo, do amor ímpar e da liberdade das imagens, a sua forma própria de restante vida no seio da Comunidade híbrida com a qual convive discretamente. 

Maria Gabriela Llansol ligará as duas correntes: o verbo e a alma, o corpo e a ideia (do Amor), na busca de um «abismo da unidade» que (segundo o místico belga Jan van Ruysbroeck) faz desaparecer «pessoas, modos e nomes»; é uma via intuicionista que liga a experiência directa de um Deus presente na Substância/no mundo, sem mediação (como em Eckhart ou Spinoza) com a vontade de apreensão de uma unidade do Ser, «sem porquê» (como ainda em Eckhart e mais tarde em Silesius, o de "A rosa é sem porquê», no século XVII). E poderíamos evocar ainda outros autores que imaginam um «misticismo sem mística», como os austríacos Hofmannsthal ou Musil (com o seu «misticismo do dia claro», em O Homem sem Qualidades«um mistério pelo qual entramos num outro mundo, o mistério de viver de modo diferente no nosso próprio mundo» (é mais uma possível definição da «restante vida» llansoliana!).

A beguina Hadewijch é em Llansol paradigma de uma concepção aberta de misticismo erótico (ou erotismo místico), uma figura dotada de uma grande capacidade de metamorfose e de mediação (a que propicia as tréguas no «livro da batalha»), que morre e renasce, reencarna em Ana de Peñalosa, no Pobre, no cão Pedra, é a avó azul e a mãe, é Escarlate (em Contos do Mal Errante) e será Psalmodia (em Da Sebe ao Ser)... E regressará ainda bem mais tarde, já na viragem do século, no complexo narrativo recentemente publicado O Texto Catarina, ou o Divã de Hadewijch (Edições Sr. Teste, 2020).

De facto, o aparecimento de Hadewijch na escrita de M. G. Llansol, logo em 1975, situa-a desde logo nessa dupla perspectiva do misticismo (com ligações a Eckhart) e do erotismo (vd. a cena da «sedução de Hadewijch», em 26 de Abril de 1975, no primeiro caderno do espólio, retomada em A Restante Vida, onde a sua primeira palavra é) «Eu vos amo!», o seu primeiro acto «fazer amor» (pp. 27-28). Mas ela é também figura do Espírito (com maiúscula, tal como o Amor nos poemas da Hadewijch histórica).

 

Maria Gabriela parece ler à letra (demasiado à letra?) o misticismo do corpo nos poemas da beguina Hadewijch, e cruza-os com uma outra tradição medieval importante, a dos Fiéis do Amor, os primeiros de uma linhagem mística e filosófica que já encontramos n' O Livro das Comunidades, e de que também Augusto Joaquim um dia se ocupou, ao fazer a dramatização d' O Livro das Comunidades, dando-lhe o título Aos Fiéis do Amor



Também aí as duas beguinas que intervêm são possuídas de grande «densidade amorosa», num plano «totalmente terreal e imanente»: acontece nessa peça a construção do «Modo Completo do Corpo». Em A Restante Vida vemos Hadewijch, sempre ausente ou fugidia, em constante metamorfose e figura de uma só arte, a do Amor, a de uma «poética do corpo» (como lhe chama Michel de Certeau, em La Fable Mystique). Mas os poemas que deixou, e algumas das suas Visões, deixam já perceber a ideia llansoliana do «Amor Completo». Esse «amor completo» é o programa de beguinas como Hadewijch de Antuérpia, fora dos «actos maiores» de todos os poderes do mundo, apontando possíveis caminhos do futuro. Porque, lemos num outro caderno, em 2003, «as beguinas... existiram a seu tempo, pretérito, porque estas damas do amor completo futurantes [i.e., de uma qualquer «restante vida»] haviam de existir...» (Caderno 1.66, p. 90).



Não vou comentar os Poemas de Hadewijch de Antuérpia que iremos ouvir ler, mas gostava de referir ainda ainda uma série de fragmentos de Maria Gabriela Llansol sobre este tema da «Restante Vida do Amor», presentes na folha de sala distribuída, em que os paralelos com Hadewijch são evidentes, na ideia de um amor múltiplo (e sempre incompleto), com várias formas possíveis, e evolutivo, ao longo de uma vida.

A fórmula que poderíamos aplicar a esta visão aberta do Amor é, uma vez mais, a do «sem porquê». Para regressar a alguns tópicos comuns a Hadewijch e Llansol quanto a uma Restante Vida do Amor, poderíamos pôr em confronto frases de uma e outra em que se torna evidente que o Amor, afinal, nunca é «completo» (a sua essência é a da incompletude, que incita à busca); que ele é a grande promessa, mas, como tudo neste mundo, não permanece idêntico a si mesmo, mas se transforma permanentemente; que, prometendo algo como a eternidade, essa eternidade é contraditória; que nele a imagem ideal do paraíso pode facilmente transformar-se num «Nada» (mas também nesse «Nada pleno» estão presentes outras formas de Amor); e ainda que a vida (o modus vivendi, o estar-aí de cada um) pode corresponder a um modus amoris (o «estar no amor», sem mais); porque o Amor, afinal, sendo «inagarrável e inenarrável», é «um inconhecido que se conhece» (diz Llansol), porque este deus humano que Deus desconhece, é «ora gracioso, ora terrível, / agora próximo e ainda há pouco distante...» (lemos num dos Poemas de Hadewijch)...

É o contrário da lição «oficial», ortodoxa, em que o Amor (espiritual) é estável e imutável. Aqui, ele é «qualquer coisa que não tem forma, nem razão, nem figura», como lemos ainda num dos poemas de Hadewijch (que serão lidos no final da sessão).



O video desta sessão pode ver-se clicando no seguinte link:

 https://vimeo.com/918493481?share=copy


 AO AMOR - GLÓRIA DO MUNDO

Nos dezasseis anos da partida



Faz hoje dezasseis anos que Maria Gabriela Llansol empreendeu a grande viagem. Ontem, no Espaço Llansol, ela esteve connosco sob o signo do Amor, e falou-nos dele e da sua «Restante Vida», com a beguina Hadewijch de Antuérpia:

«Ao Amor - Glória do mundo_______ 

Mal tinha escrito isto, a vela deu-me a ver o esquema da minha vida futura».

Ainda hoje daremos conta da sessão de ontem, a terceira do ciclo «A Restante Vida».

7.2.24

 AMAR UM CÃO NO BRASIL

Acaba de sair, em edição da 7Letras, do Rio de Janeiro, mais um livro de Maria Gabriela Llansol, Amar Um Cão, com as colagens de Augusto Joaquim. 

Pode ser adquirido no site da Editora: https://7letras.com.br/livro/amar-um-cao/


5.2.24

 THOMAS MÜNTZER EM LLANSOL:

AS BATALHAS PERDIDAS DA HISTÓRIA


Resumimos aqui alguns momentos da sessão de sábado, dia 3, em que João Barrento fez uma leitura do lugar do «teólogo da revolução» (da era da Reforma e da Guerra dos Camponeses) na primeira trilogia de M. G. Llansol, incluída no ciclo de sessões do Espaço Llansol «A Restante Vida» (mais documentação, escrita e visual, de Llansol e Müntzer, no caderno editado para esta sessão; e também no video apresentado: vd. link no final do texto).


E o homem entenderá que não pode alcançar a salvação pelo entendimento, mas que terá, em primeiro lugar, de chegar à pureza interior dos simples. Ah, que estranho vento vai ser esse para o mundo letrado, da carne e do deboche.

(Thomas Müntzer, Sermão aos Príncipes, Allstedt, 1524)

 

... essa turba camponesa que, perdendo em Frankenhausen, fez perder a Europa que, desde então, repousa,  em hibernação, na cabeça de Müntzer (...)

Müntzer do meu nome, / ou seja, / Müntzer, filho do nada.

(Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida)

 

Como explicar a presença de uma figura histórica da Reforma protestante mais radical, bastante desconhecida entre nós, ainda por cima como representante, na Obra de Llansol, da categoria do «Pobre», do desmunido e da despossessão? (vd. Posfácio de A. Borges Restante Vida).

Talvez porque servia bem a M. G. Llansol – tal como recentemente ao escritor francês Éric Vuillard, com a biografia romanceada de Müntzer que intitulou, com ecos llansolianos, A Guerra dos Pobres (Dom Quixote, 2020) – para evidenciar os grandes desastres da história europeia da era moderna e todas as batalhas perdidas dessa história (não há batalhas ganhas, todas as guerras são perdidas, as de ontem como as de hoje!) Mas Müntzer é ao mesmo tempo promessa: é aí, nas suas ideias, que, «em hibernação», pode estar uma vez mais, para Llansol, o  «perfil da esperança» de uma «restante vida»! 

O nome de Thomas Müntzer, o «teólogo da revolução» (radical e não «conservadora», como da de Lutero disse Thomas Mann) no livro do filósofo Ernst Bloch com esse título, convoca toda uma linhagem iconoclasta, de uma dinastia de vencidos que se perfila como linha promissora, mas sempre reprimida por toda a espécie de poderes,  uma afirmação, sempre adiada, do humano na história alemã e europeia. Na sua primeira trilogia, «Geografia de Rebeldes», Maria Gabriela Llansol faz uma reconstituição (figural e não factual, projectiva e não retrospectiva) da história da Europa e da Alemanha modernas pela via de uma «cultura da memória» (que permite recriar comunidades vivas), e não de uma «cultura da história» (que se limita a registar o que está à vista no palimpsesto do tempo), com base numa «árvore genealógica dos irmãos do Vazio Principal» (traçada no Lugar 24 d' O Livro das Comunidades), onde Müntzer surge como figura central, «filho do Nada», defensor de um vazio que permite o recomeço, arauto de promessas não cumpridas da História dos tempos modernos, os que se iniciam, no século XVI, com «a ética protestante e o espírito do capitalismo» (Max Weber), abrindo nela, com o seu pensamento e a sua acção, «um espaço para a evolução do possível».

 

Por paradoxal que pareça, uma tal reconstrução viva e humana do passado implica um esquecimento da história que atinge aqueles que «surgem na história com máscaras e trazem, nos fatos novos, remendos do que roubaram aos mortos» (Llansol, Finita). Fora dessa mascarada, e por vezes denunciando-a e enfrentando-a, estão os pobres da história (com a sua «restante vida» alternativa). Thomas Müntzer será um dos representantes maiores desses «sobreviventes da história» saídos da parte perdida da batalha, em A Restante Vida. O que dela resta, e se perpetua, será aquilo a que Llansol chamará precisamente «a restante vida». A restante vida é a verdade possível da história barrada do humano, que salva o esquecido do esquecimento; e o perseverar nesse gesto é uma das formas de revelar a verdade não cumprida da história, daqueles que constantemente «colocam a restante vida num cadinho para a submeter à prova do fogo» (Causa Amante).  

É claro que não é a especificidade histórico-cultural da matéria, ou de uma figura em particular, que interessa a Llansol na hora de a trazer ao espaço livre da sua singular comunidade. Para ir ao encontro do que aqui mais importa: para além do seu lugar específico na história da Reforma, Müntzer é em Llansol um paradigma radical do movimento da «liberdade de consciência» nos seus começos, e um prolongamento da via interior dos místicos renanos (que poderá corresponder aqui à categoria llansoliana complementar do «dom poético») e dos movimentos medievais do Livre Espírito e das profecias milenaristas que, sob a influência de Müntzer, se propagariam no século XVI e iriam explodir no fundamentalismo alucinado da efémera república anabaptista da cidade de Münster (de que dá conta um livro como Contos do Mal Errante). A grande oposição que Llansol destila a partir daí, e que atravessa toda a história do Ocidente até hoje, é entre o príncipe – todos os príncipes, os do poder político e os do financeiro, os da realeza e os do dinheiro, os da Igreja e os da literatura – e o pobre, sendo que o pobre não é, em Llansol, uma categoria negativa (tal como o camponês, o homem simples, ou os servos da gleba, o não é nos textos de Müntzer): ele não é, nem o pobre de meios, nem o pobre de espírito, nem sequer o proletário, mas o próprio espírito da despossessão espiritualmente intensa como princípio de vida e de acção. 

Müntzer, «teólogo da revolução» em tempos da revolução conservadora que foi a Reforma de Lutero, é a primeira grande figura da linhagem dos «Pobres» em Maria Gabriela Llansol. A segunda, paradoxalmente, será a de Luís de Camões, despido das grandezas épicas para assumir o papel de homem comum – Luís Comuns – e aprendiz de mundo pela mão de mulheres, as beguinas que, na abertura de Na Casa de Julho e Agosto, se apresentam como as Damas do Amor Completo.

O lugar dos pobres da história – o lugar de Thomas Müntzer na sua errância e nas perseguições que o levam à morte – é um lugar de risco: pela exposição aos poderes e à «trama da existência» que os alimenta, e pelo radicalismo ou pela visão antecipatória de que esses pobres são portadores. Müntzer será, por contraste com Lutero (o elemento alemão em estado puro, o anti-europeu por excelência), o elemento alemão em estado extremo, de lucidez alucinada – com o impulso radical e libertador que leva à morte ou à loucura. 

Nas origens deste «destino alemão», que Llansol, assimilando-o à sua Obra, amplia à dimensão de destino europeu e ao fatal «caminho da água» das Descobertas, está o fracasso da Guerra dos Camponeses, que – lembra já Thomas Mann (na conferência em inglês «A Alemanha e os Alemães», que profere no fim da Guerra, em 1945) – «poderia ter dado à história alemã um rumo mais feliz, o rumo para a liberdade, se tivesse vencido». A derrota de Frankenhausen e a decapitação de Müntzer representaram o começo de um destino europeu que ainda é o nosso: o das promessas não cumpridas que dariam lugar à vitória de todas as «revoluções conservadoras», ou cujo destino, nas mãos do poder, acaba por ser esse (Lutero e a Revolução Francesa, a Revolução Russa e a de Hitler, a cubana e a chinesa, a própria «revolução» do 25 de Abril, com a sua rápida «normalização»). É a vitória do falso espírito «social-democrata» no sentido original, marxiano (incluindo o do comunismo real e da sua perversão) sobre todas as mais autênticas visões socialistas e igualitárias: de Lutero sobre Müntzer, do Bonapartismo sobre os ideais da Revolução, do Terror sobre o purismo jacobino (que terá sido também o de Hölderlin), da moral cristã e burguesa sobre a ética da verdade e do porte íntegro (de Nietzsche ou Bloch). 

 




Voltamos a Thomas Müntzer e aos caminhos que a sua cabeça e a sombra do seu corpo tomam nos primeiros livros de Maria Gabriela Llansol. Sobretudo a sua cabeça decapitada, assim tornada autónoma e finalmente livreA figura de Thomas Müntzer funcionará, na primeira trilogia de Maria Gabriela Llansol (O Livro das Comunidades, A Restante Vida e Na Casa de Julho e Agosto, publicada entre 1977 e 1984) em registo predominantemente metonímico (um processo que se compreende, e é comum a outras figuras, já que na metamorfose da personagem histórica em figura textual nunca se pretende dar a sua totalidade). Müntzer surgirá, assim, nesta trilogia e também num dos diários, numa tripla dimensão metonímica:

a) como a sua cabeça, que, separada do corpo mas continuando a sonhar, guiará toda a travessia da noite e do exílio que com ele fazem, no barco do tempo e pelo rio da história e do eterno retorno, as outras figuras da comunidade (Ana de Peñalosa, sua «mãe» no texto, João da Cruz, Hadewijch, Eckhart, Ana de Jesus);

b) como o z que, no seu próprio nome, concentra no seu movimento e na sua sonoridade toda a violência da decapitação e da acção devastadora dos príncipes – e da sua «ilusão»: 

c) como centro de Frankenhausen, a batalha, verdadeira «origem» da gesta portuguesa das caravelas – leitura absolutamente original e inaudita de Maria Gabriela Llansol, explicitamente formulada (mas não demonstrada – nem teria de o ser!) numa intervenção feita em 1988 em Paris.

Percebe-se melhor, a esta luz, o estranho destino de Müntzer na primeira trilogia, quando, sem explicação aparente para isso, o seu «segundo enterro» é preparado e realizado com pompa e circunstância (acompanhado por um Requiem de Mozart) pelas beguinas precisamente em Lisboa.

Encerra-se o capítulo da batalha perdida de Frankenhausen, abre-se a via para outra, a de Alcácer-Quibir, cujos despojos darão à costa no Cabo Espichel, na figura do Rei regressado que as mesmas beguinas, para seguir a lei do Texto e renegar a da história, metamorfosearão em Dom Arbusto (em Causa Amante). A «sobreimpressão» dos dois «intentos quebrados», que poderia ter propiciado o encontro do gesto decidido da liberdade de consciência centro-europeia com a atmosfera leve da imaginação criadora que informa o dom poético, nunca chegou a dar-se; o que parecia anunciar o dom – as descobertas e o desejo do novo – foi uma vez mais pervertido pelo poder e a cobiça, e degenerou em negócio e opressão. 

A primeira aparição de Thomas Müntzer no texto de Llansol dá-se em O Livro das Comunidades, numa entrada abrupta em que o pregador alemão irrompe do Prólogo da Viva Chama (ou do êxtase) de João da Cruz. Müntzer surge logo aqui «reduzido a um corpo de criança, cujo tamanho não excede o da minha cabeça decapitada (...), fazendo ressoar com um cântico novo as claras trombetas do ar»: o místico ibérico – cronologicamente posterior! – dá lugar, na linhagem, ao visionário da acção, que intervirá através de um programa espiritual (cântico) e da agitação e da guerra (as trombetas). Mas, enquanto a personagem histórica de Müntzer exerce, de facto, uma acção agitatória e conducente à Guerra dos Camponeses – anunciada em textos tão importantes como O Sermão aos Príncipes (em 13 de Junho de 1524 no castelo de Allstedt), as reivindicações expressas na Magna Carta do Campesinato (Março de 1525, e que parece estar sendo reescrita precisamente nestes nossos dias!) e o manifesto Aos de Allstedt, nas vésperas da batalha (1525) –, a figura criada por Llansol irá sendo progressivamente temperada, ao longo dos dois primeiros livros da trilogia, por outras figuras que a ela se juntam «no barco de que não sairá a não ser para os campos de Frankenhausen», e que os conduzirá a um dos herdeiros futuros, Nietzsche, e, noutro livro, à loucura colectiva do reino dos Anabaptistas de Münster e à experiência paralela do «amor ímpar» (na leitura de Llansol, aliás, com um perfil bem diferente do de José Saramago na peça In nomine Dei, que trata a mesma matéria).

 

Há agora tempo para pensar o sentido da história, não apenas pelas vias mais estreitas da espada ou da alma, mas segundo o espírito da restante vida, que abarca toda a existência. Encontram-se aqui, no lugar em que o sonho diurno vem ocupar o lugar do ainda-não-consumado da história, três caminhos e três projectos afins: o de Thomas Müntzer, o de Ernst Bloch (que o leu e iluminou num livro que Llansol também leu e sublinhou) e o da própria Maria Gabriela Llansol. O livro de Bloch — Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução, publicado já em 1921, na época do seu Espírito da Utopia — abre com uma «Advertência ao leitor» onde se lê uma frase que, à primeira vista, causa alguma perplexidade: «Müntzer situa-se antes de toda a história, no sentido fecundo do termo». O que Bloch quer dizer, e reiteradamente afirma também noutros livros, em particular no mais tardio O Princípio Esperança, é que a obra e a acção de Müntzer assinalam um caminho a percorrer, que, apesar de esse caminho ter sido «barrado» (o termo é de Llansol), ele continua aí, na sua longa viagem, de cabeça debaixo do braço. E que a história pode ter uma validade que não se perde, compreendida como acção prolongada de visões revolucionárias e redentoras como a de Müntzer. Mas o que pode ser ainda mais significativo para a compreensão do lugar deste exemplo paradigmático na visão llansoliana da história é a utilização por Bloch, neste livro, de um conceito caro a Llansol, e que explica o que de mais essencial encontramos na viagem da sua escrita pelos domínios soterrados da história da cultura europeia e alemã: a noção de sobreimpressão. Ela serve a Bloch para explicar como todos os «vencidos», também Müntzer, para além de virem de antes da história (antes de ser já o eram, porque houve outros da mesma linhagem), se situam, por sobreimpressão, para além da história e das suas contingências, porque todo o tempo, como também Llansol bem sabia, é um tempo múltiplo (coisa hoje claramente esquecida, num tempo de vivências ocas do instante, em «tempo real»!). 

E assim Thomas Müntzer se insere na cadeia dos «póstumos» – como de si próprio disse também Nietzsche, como podemos também dizer de Maria Gabriela Llansol. 

Link para ver video apresentado na sessão:

https://vimeo.com/909683796


29.1.24

 CICLO «A RESTANTE VIDA»

2: THOMAS MÜNTZER


No próximo sábado, dia 3 de Fevereiro, pelas 16h, damos continuidade às sessões sobre o tema da «Restante Vida» na Obra de Llansol, agora com destaque para a figura de Thomas Müntzer, o «teólogo da revolução» na época da Reforma e da Guerra dos Camponeses, que atravessa toda a primeira trilogia, a «Geografia de Rebeldes».


Com comentários de João Barrento, a projecção de um video (ca. de 20 minutos) sobre a figura e o envolvimento histórico da Guerra dos Camponeses, exposição de materiais sobre o tema e o habitual caderno, com textos de Llansol e Müntzer e ilustrações provenientes do grande «ciclorama» do Panorama-Museum de Bad-Frankenhausen, o lugar da batalha decisiva da Guerra dos Camponeses.

25.1.24

 AS NÃO-ESCOLAS DE LLANSOL

O JL desta semana (24 de Janeiro) traz no Suplemento «Educação» um elucidativo artigo de Maria Emília Brederode Santos sobre a experiência singular das duas escolas (a escola da Rua de Namur e a La Maison) criadas e mantidas por Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim durante quase uma década do exílio na Bélgica, já documentadas no livro da nossa colecção «Rio da Escrita» A Escola dos Contra-grupos-Uma nova geografia pedagógica e social (de 2019).

 O LIVRO DAS COMUNIDADES EM DESTAQUE


Na próxima terça-feira, 30 de Janeiro, pelas 18h, o crítico António Guerreiro falará de dois livros da sua vida, O Livro das Comunidades, de M. G. Llansol e Finisterra, de Carlos de Oliveira. Na Livraria Linha de Sombra, da Cinemateca Portuguesa (Rua Barata Salgueiro, 39), integrado no ciclo «Que livros levarei para Pasárgada?».

8.1.24

 A VIDA RESTANTE E O RESTO ACTUANTE

Varda-Llansol: As respigadoras


Da sessão do sábado, Dia-de-Reis, com o filme Os Respigadores e a Respigadora, de Agnès Varda, que abriu o ciclo que continuará por mais duas sessões, o resumo da apresentação de João Barrento:

Que significa este conceito de Restante Vida, que deu título ao segundo volume da Trilogia «Geografia de Rebeldes» (mas já aparece bem definido antes, no prólogo de A. Borges a O Livro as Comunidades)? Aí lemos já a frase lapidar: «Este livro é a história da Tradição [sobretudo a dos esquecidos, incompreendidos, perseguidos, no fluxo da História] segundo o espírito da Restante Vida» — ou seja, não segundo a «trama da existência», o que significa que as figuras destes livros seguem o espírito de uma vida outra, não a imposta pelos poderes: são «mutantes», «fora-de-série», «acentrados» (corpo e pensamento actuantes, no caso de um revolucionário como Thomas Müntzer, pobre e puro; corpo capaz de olhar e reconhecer a beleza dos restos, em Llansol ou Varda; corpo disponível para o «Amor completo», como o de Hadewijch e outras beguinas). E ainda: é escrevendo, e escrevendo à margem de normas e modelos dominantes que se pode captar «a densidade da Restante Vida», que aqui corresponde a outra forma de corpo. E isto será decisivo para toda esta Obra, que nasce de «um corp' a 'screver», e não de um qualquer programa conceptual ou da simples vontade de narrar.

Já no posfácio a A Restante Vida, o «livro da batalha» (de Frankenhausen, nas Guerras dos Camponeses), a noção se aplica essencialmente a duas figuras maiores: Müntzer, o Pobre e sobrevivente da batalha (apesar de ter sido decapitado), e Hadewijch, na qual a Restante Vida é essencialmente a da «força amativa» do «Amor completo».

Neste livro, torna-se particularmente evidente a ligação entre a restante vida e os restos (que nos interessa agora, para o filme de A. Varda). Resto será agora tudo o que ainda ficou da História e continua a actuar (é assim que o Pobre não é mero resto morto, mas também arquétipo, ou seja, referência que permanece). A Maria Gabriela definiria, na discussão do filme de Varda em 2005, a «Restante Vida» precisamente como «o resto que tem a potência de agir e que é, no âmago, uma força». Agora, o sobrevivente da História, o Pobre, é aquele que tem «a faculdade de criação de dentro» (no fora, no social, ele é ninguém). A sua «regra», que lhe permite abrir outros horizontes, é agora a do «desmunir» ou da «despossessão». A. Borges conclui: «É no exílio, no fora de fora, que a rede de figuras... se instala para a recepção do mito da Restante Vida».

A figura do Pobre, central aqui, terá ainda outros nomes no pensamento e na escrita de Llansol. Num ensaio sobre o místico catalão Raimundo Lull, afirma-se: «Parece haver dois mundos – o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si, inimigos um do outro, temendo-se». Agora, ao Príncipe opõe-se a figura do eremita, aquele que escolheu também viver à margem.

A importância desta noção na Obra de Llansol é facilmente compreensível se pensarmos no facto de esta Obra pôr em cena «figuras», e não personagens. É inevitável para a figura – ser mutável que vive no e do Aberto – ter de viver no espaço de uma qualquer «restante vida», «estimulando o desenvolvimento das capacidades humanas e desestruturando a realidade hiper-estruturada» (Llansol, 3 de Dezembro de 2005). A restante vida e a figura fogem também à fixação numa «forma», tal como alguma arte dos restos, que o filme também mostra; a «paisagem» (não o «território» dos poderes instituídos) da figura e do espaço da restante vida são des-hierarquizados, contrariando assim a forma mais habitual do mundo; a História provou ser o «eterno retorno do mesmo» – a figura e a restante vida propiciam o «eterno retorno do mútuo» (não numa qualquer sociedade, mas numa comunidade livre)...




Os Respigadores e a Respigadora

(A Restante Vida no filme)

 

O filme de A. Varda é um exemplo acabado da dependência da noção de uma vida restante em relação a um resto actuante.

vida restante é aquela que é possível (ou se impõe a alguns) como aquilo que resta da / na sociedade do desperdício (que é o seu reverso), mum mundo cego para o mundo, que acumula, não restos produtivos, mas resíduos fatais.

resto actuante, por seu lado, é aquele que actua transformando-se (em alimento, em fonte de uma outra beleza, na arte e na escrita) e transformando a vida de quem dá por ele – o olhar é essencial nesta descoberta! – e o recolhe, dando uso ao não-uso.

O filme (e Maria Gabriela) pergunta: como se vive com os restos, para além da necessidade (imposta) de con-viver com o refugo do consumo? O que o mundo rejeita (ou não vê), o Texto e o filme aproveitam, e convertem em beleza, ou fonte de vida, ou sinal e aviso...

Daqui se conclui que há uma «vibração dos restos», que em Llansol está presente no exemplo (em Parasceve) dos cacos postos junto de uma árvore, ou também dos cacos simplesmente, do seu «pregueamento», visto como uma forma outra de beleza, para lá da simetria convencional: estamos perante uma forma de «mais-paisagem» (também própria dos restos e da restante vida), que prova, como diz Adorno na Teoria Estética, que «a arte não é higiénica». O mesmo se passa com os objectos aparentemente inúteis, não actuantes, que Llansol põe a vibrar num livro como Um Beijo Dado Mais Tarde, onde fala também de uma «arte dos restos», que vai além do uso imediato do respigo, rural e urbano, que o filme também mostra, e muita arte do século XX praticou, desde o Dadaísmo, e até à «arte bruta» e à pop.

As duas criadoras deste «encontro inesperado do diverso» entre texto e filme, tendem a valorizar os restos, cada uma à sua maneira. 

1) Em Llansol podemos dizer que há uma escrita dos restos:

– restos fracassados da História (os esquecidos), que é «o nó de que desfiei o Texto»: beguinas, místicos, visionários, rebeldes;

– os restos dos dias: o que não se vê, a não ser «em dobra»: figuras marginais, residuais, sejam elas pessoas, animais, árvores ou objectos...;

– restos de escrita (os que «se revoltam», como um dia nos sugeriu, pouco antes de morrer!); todos os livros nascem desse depósito-berço que são os fragmentos dos Cadernos. (e os muitos papéis avulsos), onde, como sabemos hoje melhor, ficaram muitos restos valiosos – «restos conceptuais altamente condensados», ou «ruídos de beleza, fulgurâncias» (Augusto Joaquim, no posfácio a Um Falcão no Punho).

2) O filme de Varda mostra a dialéctica paradoxal dos restos: há o que se aproveita e se consome, desaparece, não deixa resto nem rasto (a não ser ainda algum lixo); e há os restos rejeitados que permanecem, se transformam, são úteis, geram beleza. A sua lei (tal como a das figuras do Texto) é a da metamorfose, não do desaparecimento (sobretudo na arte dos restos – ou no que poderia ser uma sociedade da plena reciclagem).

Agnès Varda é a respigadora de imagens, descobridora, pelo olhar, daquilo que o mundo rejeita ou não vê — e aqueles restos estavam à espera deste olhar (que conhecemos também de um outro filme, que também já mostrámos, Olhares, Lugares).

O mesmo acontece com a escrita de Llansol, toda ela imagética, visual, e feita do que a ortodoxia literária não quer usar, nem ver. Aqui, como lemos em Lisboaleipzig 1, até «a morte não se limita a guardar os restos. No outro lado, no não-ver, nas nossas costas, está esculpido outro mundo». É o fascínio de uma qualquer «outridade» mais humana nesta escrita, onde o que que fica são «restos indecifráveis de uma atracção irrecusável» (lemos em A Restante Vida).

Afinal, «todos nós temos os nossos restos à mão» (Finita) – é só estendê-la e dar-lhes uso. Ou não-uso, como reconhece a mulher de Parasceve: e daí nasce «qualquer coisa superior à beleza», uma beleza-outra, uma «mais-paisagem» que pode fazer mudar de vida, numa espécie de suspensão do tempo do mundo!